Um tomógrafo evitaria que Vicente Ferreira, de 73 anos, percorresse quase 500 quilômetros desde sua casa, em Turmalina, no Vale do Jequitinhonha, até Belo Horizonte. Da mesma forma, um serviço de hemodiálise em Conselheiro Pena, no Vale do Rio Doce, pouparia a pequena Lariana Vieira, de 4, de enfrentar 400 quilômetros, a maior parte na BR-381, conhecida como Rodovia da Morte, em busca de tratamento na capital. Vicente e Lariana são dois dos milhares de mineiros que saem do interior, madrugada adentro, para ser atendidos na maior cidade do estado por meio do Sistema Único de Saúde (SUS).No trajeto, além do sofrimento de se deslocar doentes, para receber cuidados médicos longe da família, enfrentam estradas perigosas, o frio da noite e a certeza de que o sofrimento se repetirá tantas vezes quantas exigir a duração do tratamento. No conjunto, formam um contingente silencioso que retrata um quadro gritante: dos 852 municípios do interior mineiro, nada menos que 844 prefeituras, 99% do total, mandam seus doentes para se tratar em BH. Em atendimentos ambulatoriais, essa procura representou, em 2008, 6 milhões de pacientes de outras localidades. E a alta demanda que pressiona a estrutura de saúde da capital não se restringe aos limites do estado. Em 2008, segundo dados da Secretaria Municipal de Saúde (SMSA), das 218 mil pessoas internadas em BH, 0,3% delas vieram dos estados de São Paulo, Rio de Janeiro e Espírito Santo, representando, ao todo, 720 pacientes em leitos do município. Mesmo reconhecendo que, quando se trata de vidas não há barreiras e, muito menos, limites territoriais, o secretário de Saúde de Belo Horizonte, Marcelo Teixeira, diz que o grande entrave nessa história é que muitas das prefeituras que mandam pacientes para a capital não estão pactuadas com o município, o que significa que a cidade não é reembolsada por garantir atendimento a um morador de outro lugar. “Acabamos arcando com isso”, diz o secretário, afirmando não ser possível controlar quanto BH deixa de receber nesses casos. “A nossa obrigação é assegurar esses atendimentos, por mais que sobrecarreguem a nossa rede”, afirma. Já em relação às prefeituras que são pactuadas, a cidade recebeu, no ano passado, R$ 350 milhões em reembolso. Para conhecer de perto essa demanda, na última semana o Estado de Minas acompanhou, durante três dias, a chegada de pacientes do interior do estado pelas BRs 381 e 040. Antes mesmo de o dia clarear, muitos desses enfermos já enfrentaram viagens de até 12 horas. Muitos mal terão tempo de descansar antes de voltar para casa: pegarão novamente a estrada logo que anoitecer. Em apenas um dos dias e somente na estrada que liga Vitória (ES) a Belo Horizonte, entre as 5h30 e as 7h30, chegaram à capital 70 ambulâncias do interior de Minas, aproximadamente uma a cada dois minutos. Na rodovia que liga o Rio de Janeiro a BH, a média em horário semelhante foi de um veículo de socorro a cada quatro minutos. No acesso de São Paulo à capital mineira, em uma hora foram contabilizadas 11 ambulâncias. “Belo Horizonte ainda é o eixo. Pessoas de todos os lados do estado procuram a cidade para tratamentos que vão desde a média até a alta complexidade. E até mesmo cidades de Goiás, Bahia e Espírito Santo procuram atendimento por aqui”, contou o motorista Manuel Augusto, que há 20 anos percorre 300 quilômetros por viagem para trazer pacientes de Santa Rita de Minas, no Vale do Rio Doce, para a capital. Ele se agarra à fé para enfrentar os perigos da BR-381. “Faço esse trajeto três vezes na semana. É uma estrada cruel, mas contamos com a bênção de Deus para percorrê-la”, disse, apontando que muita coisa mudou nesse tempo em que está na estrada. “O fluxo de carros é outro, mas a saúde é a mesma.” Trata-se de um gargalo formado em muitos anos de falta de investimentos na saúde de pequenos municípios, que vem sendo enfrentado no estado, mas que ainda levará tempo até ser superado. “É um assunto complexo, mas que ao longo dos anos tem mudado. Os procedimentos de alta complexidade devem ser feitos nas macrorregionais. Já os atendimentos primários, nas microrregionais”, explica o secretário-adjunto de Estado de Saúde, Antônio Jorge Souza Marques, que diz que o Plano Diretor de Regionalização (PDR) do governo de Minas, que tem o objetivo de fazer com que o cidadão se desloque o mínimo possível para receber assistência adequada, está em constante atualização. “Se habitantes de perto de Téofilo Otoni, onde há condições de atendimento, não estão indo para lá e sim para BH, temos que conhecer o motivo”, exemplifica. A previsão é que a superação total desses problemas seja cumprida em 2023. Até lá, Belo Horizonte enfrenta o desafio da sobrecarga. De acordo com o secretário Marcelo Teixeira, há aproximadamente 60 mil pessoas na fila para cirurgia eletiva, sendo que, destas, 30 mil são de outros municípios. Mas, para o representante da Secretaria de Estado da Saúde, é natural que a capital exerça essa atração. “Aqui, temos investimentos em aparelhos, infraestrutura, especialidades. Tanto é que a maioria dos pacientes que procura BH vem em busca de atendimento em alta complexidade”, assegura Antônio Jorge. Em relação à procura de pessoas de fora de Minas Gerais, o secretário-adjunto diz que a demanda é anulada, já que os mineiros também usam o SUS em outros estados. “A gente usa recursos de São Paulo, assim como eles usam daqui. Há pessoas do Rio de Janeiro que são usuárias do sistema em Juiz de Fora. Mas os recursos vão para a cidade onde mora o usuário. Esse é um assunto que tem avançado, embora o ideal fosse um Programa de Pactuação Interestadual”, diz, referindo-se a um acordo que permitisse o reembolso para estados que tratassem pacientes de fora de suas divisas.Reportagem: Luciane Evans - Estado de Minas / Portal UAI