terça-feira, 29 de maio de 2012

COLUNA



Contra o racismo e a injustiça: Lima Barreto

                                                                                                        

O mês de maio é pródigo em significativas datas não só para a História do Brasil como também para as belas letras em nosso país. Assim é que escolhemos para representar tão festivo mês um dos mais controversos escritores que deixaram sua marca indelével em nossa Literatura: Lima Barreto, aliás, Afonso Henriques, nome escolhido para batizar o segundo filho do casal de mulatos Amália e João Henriques de Lima Barreto. O pai era tipógrafo; a mãe, professora. Morando nas Laranjeiras, o garoto nasceu em 13 de maio de 1881.
Quando a família mudou-se para a Ilha do Governador, Afonso Henriques permaneceu na cidade a fim de completar os seus estudos e, pelo gosto do pai, virar doutor. No Brasil todos sonham com um título de doutor e é o próprio Lima Barreto quem atestava em Os Bruzundangas: “O ensino superior fascina todos....os seus títulos, como sabeis, dão tantos privilégios, tantas regalias, que pobres e ricos correm para ele. Mas só são três espécies que suscitam esse entusiasmo: o de médico, o de advogado e o de engenheiro...”
A partir de 1897, Lima Barreto passou a frequentar a Escola Politécnica do Rio de Janeiro, cursando engenharia civil. Fez um curso irregular, colecionando reprovações. Resultado: abandonou o curso e prestou concurso público para o cargo de amanuense (escriturário) do Ministério da Guerra.
Começaria, então, a vida literária do nosso homenageado deste mês. Empobrecendo, a família mudou-se para o bairro Todos os Santos e por sua amizade com um colega de repartição, Domingos Ribeiro Filho, fez com que Lima Barreto passasse a frequentar alguns cafés onde conheceria gente do meio jornalístico, passando, em pouco tempo, a escrever para alguns jornais da cidade. Foi dessa maneira que chegou ao Correio da Manhã, onde suas reportagens sobre o desmanche do Morro do Castelo chamaram a atenção dos leitores, pela forma romanceada que dava às notícias.

Lima Barreto tinha um grande defeito, ou virtude: escrevia de maneira desordenada e quase compulsiva: planejava duas ou três obras, iniciava a todas e não concluía nenhuma. Nesse período, redigiu o plano integral e a primeira versão de alguns capítulos de Clara dos Anjos, obra que seria concluída apenas no ano de sua morte, em 1922 e publicada postumamente.
A primeira licença para tratamento de saúde, em 1906, afastou-o do Ministério por algum tempo, mas não do jornalismo e da literatura. Nesse mesmo ano iniciou sua colaboração na mais popular revista do Rio de Janeiro, a Fon-Fon. No ano seguinte fundou, com alguns amigos, a Revista Floreal, onde deu início à publicação dos primeiros capítulos do romance “Recordações do escrivão Isaias Caminha”, publicação esta abortada pela falência da revista.
Passou, então, a procurar ainda mais ajuda na bebida, tamanha a sua desilusão para com a vida, pois não encontrava editor para suas obras.
Na ânsia de ver suas obras publicadas, submeteu-se a uma grande humilhação: teria a publicidade em Portugal sem ganhar sequer um tostão pelas mesmas. Assim, foi com o livro “Recordações do escrivão Isaias Caminha”.


Através da ousadia proposta nas “Recordações”, Lima Barreto inaugurava a rebeldia no cenário do nosso Pré-Modernismo: um estilo oposto ao bem comportado modo de escrever de quase todos os seus contemporâneos. Quando a maioria deles queria agradar, Lima Barreto queria exatamente o oposto, ou seja, desagradar e escandalizar.
Por essas idas e vindas em sua vida, Lima Barreto acelerou o processo de alcoolismo:“só o álcool me dá prazer e me tenta....oh! meu Deus! Onde irei parar?”
Decepção, a falta de dinheiro e a ausência de reconhecimento fizeram naufragar mais uma vez as esperanças de Lima Barreto dentro de um copo: a boemia fazia esquecer tudo isso.
Em 1910 solicitou nova licença médica, pois já se evidenciavam no organismo do escritor os estragos produzidos pelo álcool. No ano seguinte, o Jornal do Commercio começou a publicar em folhetins a sua obra mais famosa: Triste fim de Policarpo Quaresma.
No ano de 1914 foram diagnosticadas alucinações alcoólicas e, adiante, seria internado no hospício da Praia Vermelha, dada a sua conduta agressiva: “No começo eu gritava, gesticulava, insultava, descompunha...só a minha agitação, uma frase ou outra desconexa, um gesto sem explicação denunciavam que eu não estava na minha razão”. Ali conheceu um médico que se tornaria um grande amigo seu: o Dr. Juliano Moreira.
Ao voltar para casa, escreveu em pouco tempo o romance Numa e a ninfa, uma sátira a políticos da época e à corte de bajuladores que sempre acompanha esse tipo de gente. A obra foi publicada em folhetins no jornal A Noite, em 1915. Em O novo Manifesto apontava: “Eu também sou candidato a deputado. Nada mais justo. Primeiro: eu não pretendo fazer coisa alguma pela pátria, pela família, pela humanidade. Um deputado que quisesse fazer qualquer coisa dessas, ver-se-ia bambo, pois teria, certamente, os duzentos e tantos espíritos dos seus colegas contra ele. Assim, para poder fazer alguma coisa útil, não farei coisa alguma, a não ser receber o subsídio. Recebendo os 3 contos mensais, darei mais conforto à minha mulher aos meus filhos. Desde que minha mulher e meus filhos passem melhor de cama, mesa e roupas, a humanidade ganha. Ganha porque, sendo eles parcelas da humanidade, a sua situação melhorando, essa melhoria reflete sobre o todo de que fazem parte. Concordarão os nossos leitores que o meu propósito é lógico.”
Continuava sua triste sina: a bebida fazia-lhe cada vez mais mal. Internou-se novamente para tratamento de saúde em 1918. Do leito do hospital escreveu para Monteiro Lobato que lhe ofereceu direitos autorais pela publicação da obra Vida e morte de M.J. Gonzaga de Sá e ainda acrescentou: “recebi as últimas provas, e acabo de rever os primeiros capítulos do teu livro. Que obra preciosa estás a fazer! Mais tarde será nos teus livros, e alguns de Machado de Assis, mas sobretudo nos teus, que os pósteros poderão sentir o Rio atual com todas as suas mazelas de salão por cima e sapucaia por baixo. Paisagem e almas, todas, está tudo ali!”
Para Lima Barreto, escrever sempre foi uma forma de denúncia. Por isso sua linguagem tinha que se construir com a clareza da simplicidade, avessa aos adornos da escrita que eram moda na época. Num país em que os humilhados e os ofendidos não tinham voz para clamar por justiça, essa voz encontra-se na literatura de Lima Barreto, que, com sua certeira palavra-espada, sempre cutucava a ferida da injustiça e do preconceito.
A pobreza e a situação social suburbana de Lima Barreto aguçaram sua visão e senso crítico. Sua obra é uma crônica autêntica dos subúrbios cariocas e de sua população, retratando, de um lado, a população pobre e oprimida desse subúrbio e, de outro, o mundo vazio de uma burguesia medíocre; de políticos poderosos e incompetentes e de militares opressores. Parece refletir, muitas vezes, a própria experiência do autor, principalmente a dos negros e mestiços, que sofriam na pele o preconceito racial.
No dia 1o de novembro de 1922 foi encontrado morto em seu quarto por sua irmã Evangelina. No velório, humildes e desconhecidos, esta foi a sua companhia, como se os seus personagens saltassem dos livros e viessem para o velório. Um desses chegou perto do caixão, descobriu o rosto e beijou-lhe a testa. A família quis saber quem era: “- Não sou ninguém, minha senhora. Sou um homem que leu e amou esse grande amigo dos desgraçados”.

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*  Historiador