terça-feira, 24 de julho de 2012

COLUNA

À sombra da escravidão no Brasil


Uma das mais questionadas passagens da História do Brasil é, sem dúvida, a instituição da escravidão africana que, instalando-se no limiar da colonização, estender-se-ia como uma mancha negra até os limites do século XIX, arrastando consigo todo um processo de degradação do ser humano e das relações advindas dessa prática nefanda de trabalho compulsório.

Os primeiros escravos entrados no Brasil, segundo abalizados historiadores, assim como o Visconde de Porto Seguro, em sua monumental obra de 1857 – História Geral do Brasil - e, mais perto de nós, em 1975, através de um dos principais pesquisadores do escravismo no Brasil, Maurício Goulart (A escravidão africana no Brasil), destacam que foi Pero Capico, membro da expedição guarda-costas de Cristóvão Jacques, quem primeiro traficou escravos de São Paulo de Luanda para a novel colônia portuguesa na América, entre 1516 e 1526.

Efetivamente, com respaldo da Coroa portuguesa, os cativos africanos foram desembarcados em 1559, por Alvará Régio, indo para as incipientes lavouras de cana-de-açúcar da Capitania de São Tomé (parte norte do atual estado do Rio de Janeiro).

Nestes quase 400 anos, a força de trabalho escravo sustentou a economia brasileira, iniciada com a fabricação do açúcar no litoral do Nordeste e em Campos dos Goytacazes, no norte do Rio de Janeiro; passando pela extração do ouro e diamantes na região das Minas Gerais, chegando ao cultivo do café, primeiramente na província do Rio de Janeiro, no vale do Paraíba (entre Resende e Cantagalo), e depois, após a segunda metade do século XIX, no Oeste paulista. De passagem, serviram às lavouras de subsistência e, em menor participação, nos desbravamentos do sul e do oeste, conquistados através do avanço progressivo da criação de gado.

Não obstante essa participação decisiva na economia brasileira, enquanto mão-de-obra barata e de fácil reposição, o escravo africano contribuiu para que o território brasileiro fosse edificado também com sua cultura e costumes.

Contudo, séculos de escravidão serviram para dar ao Brasil um caráter que sói ocorrer com todos aqueles países que, colônias de grandes potentados, viram-se todos emaranhados pela chaga da corrupção, pelo ganho fácil e, principalmente, pela degradação dos costumes e aviltamento das instituições.

Na primeira metade do século XIX, século este de grandes transformações no Brasil e no mundo, quando era maior a incidência da força de trabalho escravo na lavoura cafeeira, algumas vozes significativas levantaram-se contra essa forma de trabalho, antevendo a degradação moral e da própria sociedade que se avizinhava de um país liberto do jugo colonialista, como o fora o Brasil em 1822.

Entre essas vozes estava a de José Bonifácio de Andrada e Silva (retratado aqui pela tela de Benedito Calixto), uma das figuras públicas mais notáveis da História do Brasil, que entendia que a escravidão levava ao ócio do senhor, trazendo “para o nosso meio o luxo e a corrupção antes de termos a civilização e a indústria, invertendo a ordem das virtudes humanas”. Neste 19 de julho completaram-se 190 anos da assunção de José Bonifácio ao cargo de Grão Mestre do Grande Oriente do Brasil, loja que combateu diuturnamente a escravidão no Brasil.

Assim é que não estava despido de razão o grande brasileiro, considerando-se que a revolução industrial, deflagrada no século anterior na Inglaterra, deveria ser almejada pelos novos países, que viveram séculos atrelados às suas metrópoles, existindo em função delas e para elas, numa imposição inquestionável do Pacto Colonial. As fábricas, originadas daquele movimento revolucionário, deveriam ser prioridade para a economia brasileira, sob pena de viver o país, como viveu, em função da agricultura em todo o período imperial, inscrevendo-se pela República a fora como única fonte geradora de riquezas no Brasil.

Se assim ocorresse, o escravo deveria ser transformado em operário das novas indústrias que surgiram, mas como se daria essa mudança radical em suas vidas? A opção foi muito mais simples e sem grandes abalos na estrutura econômica brasileira: mantinha-se o status quo estabelecido há séculos! Era mais cômodo e menos oneroso.

Como membro destacado da elite brasileira, o libelo do Patriarca da Independência era um alerta significativo para o que se seguiria no Brasil republicano: a corrupção desenfreada, a inversão de valores morais, o entreguismo e a malversação da coisa pública são heranças de um país escravocrata, de uma nação que se forjou a troco de uma violenta e degradante massificação do trabalho escravo, manchando por séculos a imagem de um país que se pretendia grande pela ação de homens como o próprio José Bonifácio, que pugnou pela extinção dessa malfadada instituição e que antevia a queda da monarquia, se escorada por mais tempo nos braços e pernas do escravo negro.

Renascida no século XV por força da colonização das terras americanas, a instituição da escravidão gravou com marcas indeléveis os destinos das nações que dela se utilizaram. O Brasil não é exceção. Os vínculos ainda são muito visíveis e eterna a sua hedionda sombra.



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* Historiador