terça-feira, 30 de junho de 2015

COLUNA


Direitos inalienáveis – a Magna Carta completa 800 anos de existência

Corria a segunda metade do século XII e alguns reinos europeus envolvidos com a Igreja Católica buscavam a recuperação dos lugares santos aos muçulmanos do rei Saladino que, fortemente armado (com as armas de época, é claro) resistia a todo custo às investidas dos cruzados, defendendo a área estratégica que sempre foi a passagem das caravanas europeias que seguiam para o Oriente, principalmente China e Índia.
Assim, partindo em direção à Terra Santa, o rei Ricardo Coração de Leão, legítimo herdeiro do trono inglês, em uma associação com outros dois monarcas – Felipe Augusto, de França e Frederico Barba Roxa, da Prússia – rumou à região do conflito. Ali, após embates, foi ferido e feito prisioneiro o que ensejou a usurpação do trono por parte de seu irmão João, conhecido como “Sem Terra”, que de há muito vinha buscando a coroa deixada por seu pai Henrique II.
A História da Inglaterra é pródiga em lendas sobre a figura de Ricardo e de João e este último foi exageradamente caricaturado em filmes de capa e espada, onde pontificava o famoso Robin Hood. Na realidade, historiadores de indubitável competência e seriedade mostram que João colocou a coroa em sua cabeça quando foi noticiada a pretensa morte de Ricardo, aproveitando, então, para pôr em prática um rol de medidas que desagradaram em muito os barões e os clérigos ingleses. Não contava, no entanto, com o retorno do rei que, mesmo querido pelos súditos, parecia estar mais preocupado com guerras santas, daí porque ter retornado à área de conflito no Oriente onde encontrou o seu destino: morreu em combate no ano de 1199.
Estava aberto o caminho para, com legitimidade, João instalar-se no trono inglês, deixando de lado todas as cerimônias e enfiando goela abaixo dos barões e da Igreja os mais diversos impostos e desmandos reais possíveis. Está aí o cerne deste artigo: com as decisões tomadas por João, ferindo os interesses da nobreza inglesa, surgiram consideráveis protestos e a elaboração de normas que visavam, senão coibir, pelo menos refrear as ações despóticas do rei, ensejou a chamada Magna Carta, um documento redigido em latim (somente 300 anos depois seria versada para a língua inglesa) contendo 63 cláusulas consideradas justas para a governabilidade do rei e a proteção dos seus súditos ante as investidas daquele no patrimônio amealhado por estes em função de sua lealdade ao trono.


A Magna Carta, assinada por João em 15 de junho de 1215, é considerada o documento histórico mais importante da Inglaterra, influenciando sensivelmente outras nações através dos dispositivos que continha. Senão vejamos: de acordo com uma vasta gama de juristas, aí estão princípios consagrados nas mais diversas legislações nacionais, assim como a origem do júri, do habeas corpus e do princípio da justicialidade. A cláusula 48, por exemplo, dizia que “ninguém será detido, preso ou despojado de seus bens, costumes e liberdades, senão em virtude de julgamento de seus pares, segundo as leis do país”.
A Constituição brasileira, por exemplo, em seu artigo 5º, XXXVII e LIII, estatui que “não haverá juízo ou tribunal de exceção, e ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente”, um nítido reflexo da cláusula 39 da Magna Carta: “nenhum homem livre será detido, banido ou exilado ou, de algum modo, prejudicado, nem agiremos ou mandaremos agir contra ele, senão mediante um juízo legal de seus pares ou segundo a lei da terra”.
E assim por diante, com influência na legislação das nascentes nações europeias que, por via de consequência, estenderam seus legados jurídicos às colônias americanas, africanas e asiáticas.
Apesar de não ter efeitos imediatos, a Magna Carta foi reafirmada solenemente pelos sucessores de João, tornando-se, a partir de 1225, direito permanente da Inglaterra e, ainda que num primeiro momento tenha servido para reforçar os laços do regime feudal, esse documento trazia em si, ainda que a longo prazo, a definitiva degradação do regime, uma vez que, reconhecendo direitos próprios de nobres e clérigos, sem a intervenção do rei, construía-se a democracia moderna, onde o poder dos governantes passava a ser limitado, não apenas por normas superiores, fundamentadas nos costumes ou na religião, mas também por direitos subjetivos dos governados. Ou, conforme anotou meu amigo Sérgio Campos, também professor de História, pela primeira vez um “enviado de Deus”, no caso o rei, era questionado por simples mortais!

O chamado status libertatis apresentava-se como uma novidade, limitando o poder real, e chego até mesmo a supor que seria um embrião das revoluções liberais do século XIX, passando pela Revoluções Norte-Americana de 1776 e Francesa de 1789.