Roubando seu tempo*
Márcio
José Lauria**
Como eu, você
deve ter reparado que os noticiários de nossas tevês mais parecem boletins
policiais. No Jornal Nacional, por
exemplo, dos normais quarenta minutos de duração está cada vez mais comum que
os quinze primeiros só falem de Polícia Federal, de Procuradoria da República,
de delações premiadas, de um juiz que faz e acontece, de descoberta de mais uma
falcatrua envolvendo gente graúda, especialmente da Petrobrás. Um espanto, com
dizia Jô Soares no tempo em que era naturalmente gordo e engraçado.
*
Meu Deus! O
que fizeram com a Petrobrás, a maior empresa nacional e uma das líderes
mundiais no campo da exploração e comercialização de combustíveis! Agora fico
sabendo que a desvalorização das ações da empresa chegou a tal ponto e em tal
velocidade, que no começo da semana os pregões da Bolsa de São Paulo foram
interrompidos por duas vezes, em extrema tentativa de impedir-se a pulverização
de seu já enfraquecido valor. Dizem que a queda foi tão violenta, que toda a vigorosa
alta de seus papéis como decorrência da portentosa descoberta das imensas
riquezas do pré-sal simplesmente foi reduzida a zero. Ou em outras
palavras, os recursos do pré-sal, que se supunha destinados a melhorar para
valer a educação e a saúde do povo brasileiro, sumiram, assim por encanto.
Coisa de muitos bilhões de dólares.
*
Ora, sabe-se
que dólar não desaparece assim por encanto. O que aconteceu aqui e em tantos
outros lugares do mundo, foi que uma dinheirama de incalculável valor deixou de
entrar nos cofres públicos e passou para bolsos particulares. Com a tal delação
premiada, alguns peixes graúdos agora estão se dispondo a dizer o que sabem das
falcatruas próprias e alheias e a devolver polpudas quantias que abocanharam,
desde que isso signifique atenuação das penas que fatalmente terão de cumprir.
*
Outro espanto
dos dias que correm: rico e poderoso está indo para a cadeia, rico e poderoso tem
dormido em colchonetes nas celas pouco confortáveis da Polícia Federal. Sinal
dos tempos.
Um conhecido
meu, dilmista de carteirinha, usa um argumento que me lembra criança aceitando
culpas, desde que outros também entrem no rolo. Assim:
-- É, de fato
estão metendo a mão no dinheiro público, mas isso não começou agora! Já no
tempo do Fernando Henrique...
Não começou
agora, nem ontem, nem anteontem. No Brasil começou com a carta de Pero Vaz de
Caminha, introdutor da arte de dar um jeitinho em favor próprio ou de parentes,
de amigos. Eram as alvíssaras,
recompensa merecida por quem desse boas notícias a reis, a príncipes, a
figurões. Alvíssaras hoje atendem pelo nome de propinas.
*
É da índole humana deixar-se vencer pela
tentação de tornar privados certos bens públicos. Judas, alegando patriotismo,
traiu por trinta dinheiros o Mestre e não teve delação premiada. Ao contrário,
acabou corroído pelo remorso de trair e se enforcou numa árvore.
O substantivo larápio tem curiosa origem, abonada pelo seriíssimo Dicionário etimológico, de Antenor
Nascentes:
“Houve em
Roma um pretor que dava sentenças favoráveis a quem melhor pagava. Chamava-se
ele Lucius Antonius Rufus Appius. Sua
rubrica era L.A.R. Appius. Daí chamar-lhe o povo larappius, que ficou sinônimo de gatuno”.
*
Mas ninguém
tratou com mais profundeza filosófica e linguística o tema da roubalheira
pública do que o padre Antônio Vieira (1608 – 1697). Até hoje não se conseguiu
provar que o célebre jesuíta, o máximo orador sacro da língua, fosse o autor de
uma Arte de furtar, mas não há dúvida
quanto a ser ele o elaborador de um insuperável sermão do bom ladrão, pregado na Bahia, porém muito adequado para
ser lido e ouvido hoje na catedral de Brasília.
Lá vai um
trecho dele. Bom proveito e boas conclusões, apesar dos arcaísmos do texto.
“Nas
Índias, os governantes chamam-se sátrapas (Sat = assaz e rapio =
eu roubo), porque costumam roubar assaz. E este assaz é o que especificou
melhor S. Francisco Xavier, dizendo que conjugam o verbo rapio por todos
os modos. O que eu posso acrescentar, pela experiência que tenho, é, que não só
do cabo da Boa Esperança para lá, mas também das partes daqui, se usa
igualmente a mesma conjugação. Conjugam por todos os modos o verbo rapio;
- porque
furtam por todos os modos da arte, não falando em outros novos e esquisitos,
que não conheceu Donato, nem Despautério.
- Tanto que
aqui chegam, começam a furtar pelo modo indicativo, porque a primeira
informação que pedem aos antigos, é que lhes apontem e mostrem os caminhos por
onde podem abarcar tudo.
- Furtam
pelo modo imperativo, porque como têm o mero e misto poder, todo ele aplicam
despoticamente às execuções da rapina.
- Furtam
pelo modo mandativo, porque aceitam quanto lhes mandam; e para que mandem
todos, os que não mandam não são aceitos.
- Furtam
pelo modo optativo, porque desejam quanto lhes parece bem; e gabando as coisas
desejadas aos donos delas, por cortesia sem vontade as fazem suas.
- Furtam
pelo modo conjuntivo, porque ajuntam o seu pouco cabedal com o daqueles que
manejam muito; e basta só que ajuntem a sua graça, para serem, quando menos,
meeiros na ganância.
- Furtam
pelo modo potencial, porque sem pretexto, nem cerimônia usam de potência.
- Furtam
pelo modo permissivo, porque permitem que outros furtem, e estes compram as permissões.
- Furtam
pelo modo infinitivo, porque não tem fim o furtar com o fim do governo, e
sempre aqui deixam raízes, em que se vão continuando os furtos.
- Estes
mesmos modos conjugam por todas as pessoas; porque a primeira pessoa do verbo é
a sua, as segundas os seus auxiliares e as terceiras, quantas para isso têm indústria
e consciência.
- Furtam
juntamente por todos os tempos, porque o presente (que é o seu tempo) colhem
quanto dá de si o mandato;
- e para
incluírem no presente o pretérito e futuro, do pretérito desenterram crimes, de
que vendem os perdões e dívidas esquecidas, de que se pagam inteiramente; e do
futuro empenham as rendas, e antecipam os contratos, com que tudo o caído, e
não caído lhe vem cair nas mãos.
-
Finalmente, nos mesmos tempos não lhes escapam os imperfeitos, perfeitos,
plusquam perfeitos, e quaisquer outros, porque furtam, furtaram, furtavam,
furtariam e haveriam de furtar mais se mais houvesse.
- Em suma
que o resumo de toda esta rapante conjugação vem a ser o supino do mesmo verbo:
a furtar para furtar.
- E
quando eles têm conjugado assim toda a voz ativa, e o miserável povo suportado
toda a passiva, eles, como se tiveram feito grandes serviços, tornam a seus
Estados carregados de despojos e ricos; e ele fica roubado, e consumido.
É certo
que o Governo não quer isto, antes mandam em seus Ministros tudo o contrário;
mas como as patentes se dão aos gramáticos destas conjugações tão peritos, ou
tão espertos nelas; que outros efeitos se podem esperar dos seus governos? Cada
mandato destes em própria significação vem a ser uma licença geral in
scriptis, ou um passaporte para furtar”.
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* Matéria
enviada por Paulo Paranhos
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Professor de Língua Portuguesa, membro do Instituto Histórico e Geográfico de
São Paulo e ex-diretor da Casa de Euclides da Cunha, em São José do Rio Pardo