sábado, 20 de dezembro de 2014

ARTIGO ESPECIAL


Roubando seu tempo*

                                                                       Márcio José Lauria**

Como eu, você deve ter reparado que os noticiários de nossas tevês mais parecem boletins policiais. No Jornal Nacional, por exemplo, dos normais quarenta minutos de duração está cada vez mais comum que os quinze primeiros só falem de Polícia Federal, de Procuradoria da República, de delações premiadas, de um juiz que faz e acontece, de descoberta de mais uma falcatrua envolvendo gente graúda, especialmente da Petrobrás. Um espanto, com dizia Jô Soares no tempo em que era naturalmente gordo e engraçado.
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Meu Deus! O que fizeram com a Petrobrás, a maior empresa nacional e uma das líderes mundiais no campo da exploração e comercialização de combustíveis! Agora fico sabendo que a desvalorização das ações da empresa chegou a tal ponto e em tal velocidade, que no começo da semana os pregões da Bolsa de São Paulo foram interrompidos por duas vezes, em extrema tentativa de impedir-se a pulverização de seu já enfraquecido valor. Dizem que a queda foi tão violenta, que toda a vigorosa alta de seus papéis como decorrência da portentosa descoberta das imensas riquezas do pré-sal simplesmente foi reduzida a zero. Ou em outras palavras, os recursos do pré-sal, que se supunha destinados a melhorar para valer a educação e a saúde do povo brasileiro, sumiram, assim por encanto. Coisa de muitos bilhões de dólares.
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Ora, sabe-se que dólar não desaparece assim por encanto. O que aconteceu aqui e em tantos outros lugares do mundo, foi que uma dinheirama de incalculável valor deixou de entrar nos cofres públicos e passou para bolsos particulares. Com a tal delação premiada, alguns peixes graúdos agora estão se dispondo a dizer o que sabem das falcatruas próprias e alheias e a devolver polpudas quantias que abocanharam, desde que isso signifique atenuação das penas que fatalmente terão de cumprir.
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Outro espanto dos dias que correm: rico e poderoso está indo para a cadeia, rico e poderoso tem dormido em colchonetes nas celas pouco confortáveis da Polícia Federal. Sinal dos tempos.
Um conhecido meu, dilmista de carteirinha, usa um argumento que me lembra criança aceitando culpas, desde que outros também entrem no rolo. Assim:
-- É, de fato estão metendo a mão no dinheiro público, mas isso não começou agora! Já no tempo do Fernando Henrique...
Não começou agora, nem ontem, nem anteontem. No Brasil começou com a carta de Pero Vaz de Caminha, introdutor da arte de dar um jeitinho em favor próprio ou de parentes, de amigos. Eram as alvíssaras, recompensa merecida por quem desse boas notícias a reis, a príncipes, a figurões. Alvíssaras hoje atendem pelo nome de propinas.
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 É da índole humana deixar-se vencer pela tentação de tornar privados certos bens públicos. Judas, alegando patriotismo, traiu por trinta dinheiros o Mestre e não teve delação premiada. Ao contrário, acabou corroído pelo remorso de trair e se enforcou numa árvore.
 O substantivo larápio tem curiosa origem, abonada pelo seriíssimo Dicionário etimológico, de Antenor Nascentes:
“Houve em Roma um pretor que dava sentenças favoráveis a quem melhor pagava. Chamava-se ele Lucius Antonius Rufus Appius. Sua rubrica era L.A.R. Appius. Daí chamar-lhe o povo larappius, que ficou sinônimo de gatuno”.
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Mas ninguém tratou com mais profundeza filosófica e linguística o tema da roubalheira pública do que o padre Antônio Vieira (1608 – 1697). Até hoje não se conseguiu provar que o célebre jesuíta, o máximo orador sacro da língua, fosse o autor de uma Arte de furtar, mas não há dúvida quanto a ser ele o elaborador de um insuperável sermão do bom ladrão, pregado na Bahia, porém muito adequado para ser lido e ouvido hoje na catedral de Brasília.
Lá vai um trecho dele. Bom proveito e boas conclusões, apesar dos arcaísmos do texto.

“Nas Índias, os governantes chamam-se sátrapas (Sat = assaz e rapio = eu roubo), porque costumam roubar assaz. E este assaz é o que especificou melhor S. Francisco Xavier, dizendo que conjugam o verbo rapio por todos os modos. O que eu posso acrescentar, pela experiência que tenho, é, que não só do cabo da Boa Esperança para lá, mas também das partes daqui, se usa igualmente a mesma conjugação. Conjugam por todos os modos o verbo rapio;
- porque furtam por todos os modos da arte, não falando em outros novos e esquisitos, que não conheceu Donato, nem Despautério.
- Tanto que aqui chegam, começam a furtar pelo modo indicativo, porque a primeira informação que pedem aos antigos, é que lhes apontem e mostrem os caminhos por onde podem abarcar tudo.
- Furtam pelo modo imperativo, porque como têm o mero e misto poder, todo ele aplicam despoticamente às execuções da rapina.
- Furtam pelo modo mandativo, porque aceitam quanto lhes mandam; e para que mandem todos, os que não mandam não são aceitos.
- Furtam pelo modo optativo, porque desejam quanto lhes parece bem; e gabando as coisas desejadas aos donos delas, por cortesia sem vontade as fazem suas.
- Furtam pelo modo conjuntivo, porque ajuntam o seu pouco cabedal com o daqueles que manejam muito; e basta só que ajuntem a sua graça, para serem, quando menos, meeiros na ganância.
- Furtam pelo modo potencial, porque sem pretexto, nem cerimônia usam de potência.
- Furtam pelo modo permissivo, porque permitem que outros furtem, e estes compram as permissões.
- Furtam pelo modo infinitivo, porque não tem fim o furtar com o fim do governo, e sempre aqui deixam raízes, em que se vão continuando os furtos.
- Estes mesmos modos conjugam por todas as pessoas; porque a primeira pessoa do verbo é a sua, as segundas os seus auxiliares e as terceiras, quantas para isso têm indústria e consciência.
- Furtam juntamente por todos os tempos, porque o presente (que é o seu tempo) colhem quanto dá de si o mandato;
- e para incluírem no presente o pretérito e futuro, do pretérito desenterram crimes, de que vendem os perdões e dívidas esquecidas, de que se pagam inteiramente; e do futuro empenham as rendas, e antecipam os contratos, com que tudo o caído, e não caído lhe vem cair nas mãos.
- Finalmente, nos mesmos tempos não lhes escapam os imperfeitos, perfeitos, plusquam perfeitos, e quaisquer outros, porque furtam, furtaram, furtavam, furtariam e haveriam de furtar mais se mais houvesse.
- Em suma que o resumo de toda esta rapante conjugação vem a ser o supino do mesmo verbo: a furtar para furtar.
- E quando eles têm conjugado assim toda a voz ativa, e o miserável povo suportado toda a passiva, eles, como se tiveram feito grandes serviços, tornam a seus Estados carregados de despojos e ricos; e ele fica roubado, e consumido.
É certo que o Governo não quer isto, antes mandam em seus Ministros tudo o contrário; mas como as patentes se dão aos gramáticos destas conjugações tão peritos, ou tão espertos nelas; que outros efeitos se podem esperar dos seus governos? Cada mandato destes em própria significação vem a ser uma licença geral in scriptis, ou um passaporte para furtar”.

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* Matéria enviada por Paulo Paranhos
** Professor de Língua Portuguesa, membro do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo e ex-diretor da Casa de Euclides da Cunha, em São José do Rio Pardo